terça-feira, 3 de junho de 2014

Palavra-ermitão

O livro anda meio esquecido? Ou somos nós que mudamos de olhar? Olhar a página passou a ser uma tarefa onerosa, um luxo estranho, um domingo nublado esperando a segunda para limpá-lo. As gerações de hoje convivem com este abismo de contradições. A informação é gratuita, a paciência custa barras de ouro. 
E as gerações que tanto leem? O que foi feito delas? O luxo das estranhezas da leitura parece se afastar à medida que a tecnologia devora nosso tempo sem a mínima piedade. Sim. Somos devorados pelos dispositivos móveis; e nos tornamos imóveis, estátuas de cera a aguardar o calor da leitura para novas viagens, para possibilidades além das telas. Porém há muito mais a ser visto nesse turbilhão de informações desencontradas e pensamentos pela metade.
Eis que na barriga do monstro-da-falta-de-tempo nos deparamos com o fantasma da leitura, esquecido, empoeirado, cheio de teias de aranha. Ele ainda é visitado por muitos, empoeirados também, mas pela poeira do querer-mais. Claro. A criança, que ainda insiste na luta, visita a leitura em seus momentos de descontração, quando o interessante parece ser apenas o pensamento-feito. A criança ainda é capaz de ler, de imaginar, de sonhar com as possibilidades das palavras, não das telas. A luz da tela é artifício. Um artifício a ser aproveitado, para que a criança não pare de sonhar. Pense no espanto do homem de outrora quando lhe disseram que o livro não seria mais a pedra com letras entalhadas, mas sim um pedaço de couro, uma fibra repleta de letras. Certamente, o homem enxergou a caravana das palavras como uma migração estranha e sem sentido... as palavras gravadas na pedra durariam eternidades. No entanto, o livro desencarnou e baixou no primeiro papiro que lhe veio à frente. O download das palavras da pedra para o papiro deve ter sido traumático, a desconfiança talvez consumiu escribas e os mais céticos. As palavras não sobreviveriam ao tempo e à fragilidade da nova casa-papiro, pensaram os mais temerosos.
As palavras insistem. E veio o papel, a ocupar pilhas e pilhas em nossas vidas e repartições. As palavras outra vez, partidas. E nesse pêndulo, a inquietude dos vocábulos parece não ter fim. Dessa maneira, o livro trocou de corpo, mais uma vez, para provar sua fluidez. Quanto espanto. Os olhos daqueles que negam a tecnologia parecem não acreditar no livro-pdf, no livro-blog, no livro-mutante, abstrato, na leveza de Calvino. E hoje as palavras caminham pelos vales ermos dos arquivos digitais, esgueirando-se entre fotos e aplicativos, nas florestas frias dos computadores e dos celulares. O que as torna vivas, como antes, é o apelo da criança para que alguém leia o livro-mudo que se rende ao clamor das letras, ferozes, vorazes, prontas para encher nossos corações e derreter as estátuas de cera que nos tornamos. 
A gratuidade da informação divide espaço com a sensação de que o conhecimento está ali, quieto, esperando o comando para atacar e mudar nossa realidade. Mas ele não rasteja até nós, conhecimento é lavoura, é suor, é conteúdo saindo do casulo, do casulo-livro, da mutação das estranhezas e das sutilezas das palavras. E por falar nelas, palavra dada não é palavra limada. O livro apenas trocou de corpo, sua força transformadora ainda vaga por aí, livre do peso das tábuas de pedra, de barro, da poeira do papel-da-idade-da-pedra-do-papiro.E se o livro mudou, nós precisamos mudar.   

Um comentário:

Denise Ferreira... disse...

"O novo sempre vem..."
E na batalha entre novas tecnologias, o livro se mantém como o velho sábio, pai de todos.
Acredito que os livros correram no tempo para nos acompanhar, passando por diversas metamorfoses,perdendo suas folhas de papel e entrando para dentro dos smartphone's da vida pós-moderna.
Também acredito que os livros continuam sendo a digna herança das gerações e nações. Mas, talvez agora de uma maneira diferente, cabendo a nós aprendermos a caminhar e integrar essas mudanças nessa Era de liquidez. Texto maravilhoso.