Recogitar
Todo ato educativo deve ter, em seu íntimo, um caráter libertador. Muitos consideram que a tecnologia existente supera os limites de capacidade de percepção humana, levantando uma crença em uníssono de que os recursos tecnológicos são facilitadores perigosos, que cerceiam o pensamento e nos privam do desenvolvimento criativo.
Ora, o problema talvez esteja no uso. Se educar é libertar, devemos investir na criatividade muito antes da tecnologia. É estranho imaginar, hoje, um indivíduo pensante que não use um computador ou qualquer outra engenhoca desde sua alfabetização. Mas o ato criativo vem antes disso. A criatividade é um processo de auto-descoberta, que se revela aos poucos, na interação entre os indivíduos com o mundo. Privá-los disso seria reproduzir sombras nas cavernas. Ou seriam sobras?
O que há de controverso? Nossas habilidades se manifestam à medida que recebemos estímulos. E não será possível o estímulo com crianças prostradas, integralmente, diante de computadores, tampouco manejando gadgets, à beira do esgotamento mental, onde o corpo responde apenas a comandos programados. O problema está no uso descontrolado das tecnologias. E há algo pior e mais perigoso aí. Atualmente, muitos vêm no virtual uma forma de escapismo, um mundo imaginário onde somos onipotentes. A liberdade através da educação vai de encontro a esse contexto de onipotência. Educar-se é, sobretudo, reconhecer limites.
Fora isso, muito mais nos é acrescentado, clareza de pensamento, sensibilidade... A tecnologia sem propósitos nos torna tão frios quanto as máquinas que manipulamos. Portanto, é preciso viver, ler das manchetes de jornais às palavras soltas nos lábios das crianças, sentir o vento tocar nosso rosto, pisar no chão e perceber a aspereza das pedras, o toque sutil da água. Podemos nos maravilhar com fotos belíssimas compartilhadas nas redes sociais, mas este frenesi nem se compara à contemplação de uma paisagem, aos sons, aos gostos, aos toques de luz. A tecnologia deve nos servir de ferramenta, não substituir-nos.
O perigo das facilitações é a propagação do mecanicismo das relações - que já dura décadas. É um brinde à frieza, à perda dos valores. A velocidade das informações não é sinônimo de instrução, muito menos de aculturação. O dicionário eletrônico ganha valor quando já passamos pelas páginas de papel, pelas palavras perdidas, encontradas casualmente quando fazemos uma consulta. O volume monstruoso de e-books é um convite à desinformação, ao passo que educar-se é a porta para o aprofundamento, não para a superficialidade das coisas.
Enfim, não podemos nos render à perversão de um sistema que deseja pessoas embrutecidas pelas circunstâncias, engolidas pela falta de tempo e por milhões de afazeres. Vamos deixar as crianças provar o gosto das imagens reais, para depois admirar os posts. Antes da ostentação de milhares de livros trancafiados num chip, o melhor é ter a consciência tranquila de que podemos enfrentar todas as palavras contidas neles. E que estas nos sirvam de instrumentos de transformação da realidade, por um mundo mais livre, em que o intelecto se valha de ferramentas, mas que não se curve diante delas.
Por Giovani Ramos
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